Achei legal este artigo. "Muitas vezes a gente não escolhe nosso trabalho, muitas vezes o trabalho nos escolhe"(Borim,G.). Assim:
O SIGNIFICADO DO TRABALHO
Cavalet, Susan Regina Raittz
Denardi, Cristiane
Dirken, Edenir Cristina
Haro, Maria Elizabeth Nickel
Resumo
Trabalho, mais do que sobrevivência, é uma das mais expressivas manifestações do ser humano. É algo semelhante à arte, onde o homem transforma e é transformado. Desde os primeiros anos de vida, aprende que fazer algo com um objetivo definido conquista espaço, respeito, consideração e auto-estima. Descobre a satisfação de desenvolver uma habilidade e externá-la num produto ao qual se percebe conectado.
O trabalho, diferente da simples atividade, deve preencher um porquê, uma finalidade e um valor. A razão pela qual executamos algo está vinculada a quem somos e como estamos no mundo. Reflete nossa auto-imagem, e nos agrega ou retira a possibilidade de realização pessoal, de acordo com a utilização das potencialidades e competências individuais. Hoje, mais do que em épocas anteriores, o ser humano se vê diante do conflito entre submissão às regras do novo mercado de trabalho e suas próprias necessidades. Será possível ainda a aliança consigo mesmo e o produto, ou a cisão é inevitável? Qual o reflexo para as organizações atuais da presença ou ausência de significado do trabalho para seus integrantes?
O significado do trabalho
As atuais mudanças desen-cadeadas pela globalização são de tal forma revolucionárias que ultrapassam o boom tecnológico. O ser humano está sendo forçado a dar um salto evolucionário para o qual não teve tempo de se preparar. A História nos mostra períodos de inovações que exigiram adaptações quanto a conhecimentos, atitudes e habilidades, mais ou menos intensas, todas sem precedentes. A Revolução Industrial é um exemplo clássico. Entretanto, a presente metamorfose nos impõe exigências de tal forma urgentes e volumosas que o impacto psicológico e social não pode ser ainda completamente avaliado ou previsto, pois estamos em meio ao processo. Pode-se apenas senti-lo e observá-lo à flor da pele das pessoas e das instituições sociais na forma de insegurança, opressão, e remotas esperanças de um futuro melhor.
A busca desta adaptação tem sido colocada como prioritária pelo homem moderno, como condição de sobrevivência. Parecem não haver alternativas a curto prazo, a não ser a de interagir com o movimento. Empresas e empregados respondem procurando se antecipar às necessidades, antevendo novas regras de mercado, propondo outras realidades, concretas e virtuais. É preciso desenvolver novos valores, tecnologias e produtos, a fim de alcançar parâmetros mínimos de competitividade e subsistência.
Uma palavra constantemente pronunciada, e que se tornou lei, é velocidade. Não basta saber, é preciso saber antes. Não basta fazer, é preciso fazer antes. Até mesmo o vocabulário de alguém que se pretende atualizado é foco de atenção cuidadosa, visto que num período curtíssimo de tempo se torna obsoleto, diferenciando informados e "des"-informados.
É neste meio ambiente que surge a questão da relação do homem com o seu produto. Afirma CODO (1995,p. 141) que trabalho é o ato de depositar significado humano à natureza. Complementa a afirmação ao apontar que, numa sociedade baseada na cooperação e na troca, trabalho é o ato de depositar significado social à natureza. Ao produzir, o homem transforma a natureza e é por ela transformado. Seu produto o representa e o reapresenta. A própria sociedade é criada e tem seus valores modelados pelas formas de produção.
Como forma de expressão do homem, o trabalho pode ser comparado à arte. É a manifestação de algo interno que se apresenta na concretização do esforço despendido, expondo crenças, atitudes e valores. Este princípio é válido tanto para aquele satisfeito com seu trabalho quanto para o insatisfeito. No primeiro caso, o sujeito alienado de si mesmo exterioriza seus preceitos de submissão ou acomodação ao sistema. No segundo, atualiza seu potencial, no dizer de ROGERS (1961) o que o coloca no caminho da individuação, e, portanto da realização pessoal.
O trabalho como autoexpressão - origens
A noção de que o trabalho é uma das formas mais profundas de expressão humana em contrapartida a de que seria apenas um ato de sobrevivência, não é nova, e está profundamente arraigada em hipóteses criadas, testadas e sedi-mentadas pelo indivíduo no decorrer de sua história. A teoria do desenvolvimento de ERICKSON (1976, p.227) mostra que em sucessivas etapas da elaboração da identidade surge o aspecto da produção individual. À medida que o ser humano se desenvolve e entra em contato com a realidade dos papéis sociais, percebe que sua inserção na sociedade pressupõe desempenhos. Ser alguém está intimamente associado a fazer algo.
A necessidade de reconhecimento ou confirmação surge muito cedo. Os movimentos inicialmente desordenados do recém-nascido, respondendo basicamente a estímulos biológicos, vão aos poucos sendo substituídos por ações intencionais em tentativas de comunicação organizada, isto é, com o objetivo de traduzir conteúdos internos - sensações, desejos, necessidades. Os feedbacks fornecem referências que auxiliam a criança a se situar no mundo. É através desta interação que se passa de um estado de indiferença com o meio para o de diferenciação, dando lugar ao reconhecimento do ser individual, separado do todo. O processo é longo, está fundamentado no agir e na percepção particular da ação, e culmina com a construção da base da identidade individual.
Nestes primeiros anos, o agir se dá em função do prazer da exploração e do movimento, as descobertas são surpresas e a intencionalidade decorre de uma exuberante imaginação. A meta é conhecer o ambiente, seu conteúdo e funcionamento, sendo estas experiências as que dão origem aos traços primários da auto-imagem. Segundo a teoria, o sucesso ou fracasso nestas empreitadas trarão consigo os sentimentos de confiança ou desconfiança básicas, autonomia ou vergonha e dúvida, e iniciativa ou culpa. São o alicerce da identidade, protótipos de futuras elaborações. As próximas etapas estão já, portanto, influenciadas por este substrato.
Uma vez que a exploração do meio permita um certo nível de domínio, a criança entra numa nova fase. Descobre que ao desenvolver "habilidades e tarefas que excedem em muito os limites da mera expressão prazerosa de seus modos orgânicos ou o prazer que lhe causa o funcionamento de seus membros" (ERICKSON, 1976,p.238) encontra aceitação e aprovação. No período que corresponde ao que FREUD identificou como latência, inicia a busca da industriosidade. Substitui o brincar desordenado por atividades mais planejadas, e aprende que fazer coisas conquista consideração. Coincide com a época em que começa a receber instrução escolar mais sistematizada, e percebe que os limites de seu ego incluem suas ferramentas e habilidades (ERICKSON). Produzir passa a ser ao mesmo tempo um prazer e um meio. O agir intencionalmente para atingir um objetivo é em si agradável, ao mesmo tempo que proporciona a abertura para situações também gratificantes - o intercâmbio com o grupo, a concretização de um ideal através do produto elaborado, e a aprovação individual e social. É o primeiro contato objetivo com o mundo do trabalho. A criança estará exposta a oportunidades que tanto poderão comprovar suas possibilidades de industriosidade quanto de conduzi-la a sentimentos de inadequação e inferioridade. A comprovação de que é capaz de produzir facilita a inserção e locomoção no grupo social, e o fracasso nas habilidades de produção desencoraja a participação no grupo e no mundo das ferramentas. O insucesso traz à tona raivas submersas decorrentes da frustração dos impulsos. Ao completar esta etapa, o indivíduo terá acrescentado à sua identidade ou a condição de capacidade de produção ou a de sentimento de mediocridade e inadequação, já agregados de frustração e raiva.
Na adolescência, a soma de mudanças biopsicossociais levam a um verdadeiro tumulto. Novas maneiras de ver, sentir e pensar o mundo pressionam no sentido de uma definição, e o sujeito se cobra e é cobrado quanto a posiciona-mentos. É preciso agora saber quem ele é realmente, o quê quer e para quê quer. Uma gama de papéis deve se tornar nítida para o indivíduo e para a sociedade. É indiscutível a importância da sexualidade nesta fase, cuja atividade ocorre no sentido de delinear parâmetros de comportamento que virão a interferir inclusive no campo profissional. A outra questão que surge como fundamental é "o quê ele vai ser" - profissionalmente. A escolha do futuro campo de trabalho pretende conciliar fatores tão diferentes quanto habilidades, tendências, necessidades, preferências e busca de status social. A força da expectativa dos ideais edificados nesta fase será forte impulso durante toda a vida produtiva. Como na infância se desenvolveram protótipos de alguns sentimentos ligados à identidade, também aqui são elaborados os ideais em estado puro. A perda do contato com estes sonhos, o fracasso, distanciamento ou a impossibilidade de levá-los adiante é o que no futuro gerará frustração e mediocridade profissionais. É o ideal construído nesta fase que permeará o trabalho vocacionado, mesmo que este venha a sofrer redirecionamentos no decorrer da vida laboral, porque fornece o sentido e a razão de uma busca. É a crença que oferece significado aos futuros empreendimentos.
A partir da entrada efetiva no mundo do trabalho, o adulto começa a testar e validar as expectativas criadas. Os ideais traçados nas fases anteriores, ainda em estado bruto, passam por uma verificação, podendo sofrer adaptações de acordo com as circunstâncias. Permanecendo a essência intacta, isto é, podendo o sujeito utilizar seu potencial, somado à automotivação, o fazer profissional poderá se encaminhar para uma resolução satisfatória. Isto só se realiza se, no dizer de KIERKGAARD (in ROGERS, 1961), pode-se "ser o que realmente se é", e quando nos referimos a trabalho, isto significa atuar de forma a explorar e desenvolver as próprias capacidades e interesses inerentes.
O trabalho hoje
Os avanços tecnológicos, em princípio com objetivos de "humanizar" a vida, têm colocado o homem numa situação paradoxal. Se, por um lado, é verdade que hoje é possível trabalhar em condições mais amenas fisicamente, e até mesmo por vezes bastante agradáveis, também é verdade que "a ciência manipulada das relações humanas, que tenta precisamente dar uma imagem agradável ao labor, pretende afastar somente o sentido de alienação e não a própria alienação" (HELLER, 1997, p.170).
Dentro do contexto atual, onde a ameaça à territorialidade profissional está presente, a competência é infinita e constantemente testada e os mais fortes impulsos competitivos são estimulados, como é possível esperar que se mantenha o contato consigo mesmo, como fazia o artesão da Idade Média ou o agricultor, através da sintonia com produto? Será que o homem ainda espera encontrar sentido naquilo que faz ou está definitivamente cindido ?
Há sintomas evidentes de que a ação mecânica sem significação tem sido tolerada somente dentro do ambiente de trabalho, provavelmente pelo que MASLOW apontaria como ligado à satisfação da necessidade de sobrevivência. Fora deste ambiente, entretanto, é que a grande massa de trabalhadores dá o melhor de si, executando atividades automotivadas que realmente preenchem e conduzem à satisfação interna.
"Trabalho é mais do que emprego, é o ato de atribuir significado ao meio, portanto a si mesmo e ao outro". CODO (in DAVEL, 1995, p.165).
Segundo CODO (in DAVEL, 1995, p.142) para que o indivíduo se reconheça e ao outro, é preciso que esteja conectado a seu produto e, dessa forma, a si mesmo. Já na infância aprendeu a valorizar o que faz para interagir, e ao mesmo tempo conquistar espaço e afirmação. Ao desconectar-se, a individualidade se dilui, perante o outro e perante o mundo. Sem estes contatos é difícil sentir a si próprio. A crise contemporânea, verdadeira epidemia, revela um momento histórico ultrapassado, cujas premissas básicas que fundamentaram a produção em massa característica de nosso século caem por terra. Outro século começa a despontar, trazendo consigo muito mais buscas do que respostas, já que a alienação permanece subjacente.
Conclusão
O que fornece significado ao trabalho é o propósito pelo qual ele é executado. É individual e intransferível, sendo, portanto, claramente específico para cada ser humano. O que diferencia uma simples atividade do trabalho em si é a razão de sua realização. O trabalho deve preencher um porquê, uma finalidade e um valor (ANGERS, 1998, on line). A razão pela qual executamos algo está vinculada a quem somos e como estamos no mundo: como nos sentimos a respeito de nós mesmos, e de que forma aquilo que fazemos impacta no mundo. O trabalho tem em si um valor intrínseco. Não é necessário que o produto seja "útil" ou "prático". A arte é também trabalho porque expressa seu criador, interfere no ambiente e é automotivada. O que o sujeito faz expressa o que ele é no mundo, definindo-o parcialmente - levando em conta que a realização não se determina somente a partir do trabalho. A ação com significado possibilita o respeito para consigo mesmo e para com o outro, e sentimentos como esperança, dignidade, mutualidade e oportunidade de acesso a outras áreas.
Em 1990, o American Psychologist publicou que o The National Institute for Ocupational Safety and Health (NIOSH), nos EUA, reconhece as desordens psicológicas ocupacionais como um problema prioritário. Dentre os fatores determinantes desta situação está sem dúvida a questão do significado, pois é ele quem diferencia o trabalho compulsório daquele natural e agradável. Esta parece ser uma idéia atemporal, que independe de cultura, nível social ou local.
De acordo com BONSUCESSO (1997, p.16), ao atribuir valor a seu fazer profissional, o indivíduo leva em conta:
• opção pessoal - a escolha da profissão (por vezes compulsória);
• montante de esforço físico e intelectual;
• monotonia ou variação;
• relação entre o que faz e o todo;
• possibilidade de criação e auto-realização;
• status na organização e na sociedade;
• nível de remuneração.
O vínculo se dá a partir do momento em que o trabalho mostra relação com as expectativas, interesses pessoais, e perspectivas de crescimento pessoal e profissional. O nível de comprometimento, e porquanto da qualidade do produto, estão diretamente afetados pelo sentido que faz na vida do sujeito o objeto de seu trabalho.
O fato de que a maioria dos trabalhadores hoje não consegue visualizar sentido em seu trabalho, não significa que a simples sobrevivência basta. O indivíduo deixa para "viver a vida" fora do contexto ocupacional, indicando que o vazio precisa ser preenchido de alguma forma. Defronta-se com conflitos como: não dever esperar do trabalho mais do que ele lhe pode oferecer, pois é apenas uma parte da vida, ao mesmo tempo em que se obriga a ter que se dedicar cada vez mais a ele, em tempo e energia. O desequilíbrio ocasionado pelo peso maior colocado neste papel traz conseqüências pessoais e sociais, atingindo diretamente a qualidade de vida pessoal, familiar e comunitária. Em última instância, o próprio trabalho tende a ser prejudicado porque é mantido a partir de um superfuncionamento, em detrimento do subfuncionamento dos aspectos pessoais do indivíduo. A repercussão, seja em nível técnico, seja em nível interpessoal, é inevitável.
A crise atual de valores, as buscas de respostas mágicas, a corrida ao misticismo, a procura do significado da vida, por vezes de formas tão tortuosas, demonstram claramente que anseios profundos do ser humano têm sido amplamente desconsiderados pela sociedade atual. Longe de reduzir a problemática humana às questões do trabalho, não se pode, entretanto, negar que é basicamente a partir dele que o homem se expressa e sobrevive. O espaço que o trabalho ocupa na vida de qualquer ser humano produtivo é imensamente maior do que o de subsistência pura e simples. Quer a ele seja agregado prazer ou desprazer, jamais passa desapercebido. Ou é uma carga a ser angustiadamente carregada, ou um meio de se atingir uma meta maior, parte de um objetivo de vida.
Referências bibliográficas
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CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo : Cultrix, 1996.
O ponto de mutação : a ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo : Cultrix, 1996.
DAVEL, Eduardo. Recursos humanos e subjetividade. Rio de Janeiro : Vozes, 1997.
ERICKSON, Erick H. Infância e sociedade. Rio de Janeiro : Zahar 1976.
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MOSCOVICI, Fela. Desenvolvimento interpessoal : treinamento em grupo. Rio de Janeiro : José Olympio, 1997.
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SENGE, Peter. A Quinta disciplina : caderno de campo. Rio de Janeiro : Qualitymark, 1997.
A empresa do ano 2000. HSM Management, Rio de Janeiro, v. 1, n. 3 - 4, p.38 - 46, 1997.
Capítulo extraído da monografia Pessoas e organizações: uma parceria para o crescimento, apresentado como conclusão do Curso de Especialização em Psicologia Organizacional e do Trabalho para a Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em dezembro de 1998.
Autoras
Susan Regina Raittz Cavallet ,
administradora pela FUOC, especialista em Psicologia Organizacional e do Trabalho pela PUC-PR, consultora em desenvolvimento pessoal e organizacional
Cristiane Denardi,
psicóloga pela Universidade Tuiuti, especialista em Psicologia Organizacional e do Trabalho pela PUC-PR, consultora autônoma
Edenir Cristina Dirken,
psicóloga pela UFPR, especialista em Psicologia Organizacional e do Trabalho pela PUC-PR, consultora pelo Senac
Maria Elizabeth Nickel Haro,
psicóloga pela PUC-PR, psicoterapeuta sistêmica – clínica comportamental, formação em psicodrama e terapia comporta-mental, especialista em Psicologia Organizacional e do Trabalho pela PUC-PR, consultora em desenvolvimento pessoal e organizacional – Interpess Assessoria.
http://www.sanepar.com.br/sanepar/sanare/v11/Significado/Significado1/significado1.html